top of page
Foto do escritorArquidiocese de Pelotas

“DESLIGAR-SE” DE DEUS



Conhecemos a refinada parábola do "Filho pródigo", contada pelo mestre de Nazaré e que se encontra descrita no Evangelho de Lucas. O filho mais novo sai de casa para viver "sua vida". E nessa vida, "gastou tudo, vivendo dissolutamente ".

O que esse "desligar-se” do filho mais novo para viver "sua vida", tem a ver, analogicamente, com a religião? Religião, etimologicamente, vem do latim "re-ligare", isto é, ligar-se continuamente. Desligar-se é, pois, ruptura. A humanidade de hoje ainda tem a conduta do "religar-se" a Deus? Ou realmente é hora definitiva do “desligar-se” de Deus?

O primeiro momento do "desligar-se" de Deus dá uma sensação de independência, de sentir-se livre de um peso insuportável. É a experiência da "liberdade de". Quanto à "liberdade para", ela é sentida, de imediato, como abertura promissora à vida em todas as suas possibilidades. Liberto da obediência ao pai, o filho agora se crê senhor de si. E sonha com todas as aventuras. Sua liberdade não aparece apenas como meio, mas como "valor valorante", ou seja, como "fim e fonte de valor". Da mesma maneira, para o assim chamado "homem moderno", o "desligar-se” do Deus vivo, não deixou, no seu imediato, um senso de vazio, pois, no altar do "velho Deus", agora foi colocado o próprio "homem" e seu poder. Agora o "eu" é o novo “d-eu-s": é o antropocentrismo; e o "mundo" é seu reino: é o secularismo.

O que está na raiz dessa deriva autodivinizadora? É a hybris grega, a vontade de potência, que a Sagrada Escritura chama de "soberba". Realmente, seu efeito primário é o "desligar-se" de Deus, como diz o livro sagrado do Eclesiástico: "Desligar-se de Deus é o princípio da soberba". Em seguida, a soberba faz com que o "homem se estime [...] como deus de si mesmo, isto é, como se fosse o primeiro princípio e o último fim de si mesmo", nas palavras de Bossuet. A "modernidade triunfante" desfraldou, como o Arcanjo rebelde, a bandeira do non serviam: "Quebraste o jugo, rompeste os laços e disseste: 'Não servirei’" - escreve o profeta Jeremias. Esse foi também o pecado original da humanidade: pretender ser "como deuses, conhecedores do bem e do mal", segundo está escrito no livro sagrado do Gênesis. "Conhecer o bem e o mal" aqui não é simples "saber", mas "determinar" o que é bem e o que é mal para si. É decidir por própria conta e força, independentemente de Deus, como próprio deus, qual é o sentido da vida, ou seja, onde está a felicidade.

Essa é a ambição desmedida do homem de todos os tempos. Tal ambição se encarnou na história na forma de várias tiranias autodivinizadas. Com a “modernidade”, porém, tal tentação ganhou dimensões sociais e mesmo civilizacionais. O homem "moderno" quer fazer sua vida por si mesmo, sem se submeter a nenhum princípio externo, muito menos à lei divina. O ideal social do chamado “homem moderno" é o do homem "emancipado" - "desligado", completamente "autônomo", que não precisa mais de Deus, porque ele é deus de si mesmo. É o novo absoluto, desligado literalmente (solutus) de (ab) qualquer transcendência, menos talvez, por ironia, da "transcendência social", exaltada por Durkheim.

De fato, a autodivinização do homem teve recentemente seus filósofos modernos defensores: Feuerbach, Hegel, Stirner, Marx, só para citar alguns. Veio finalmente Nietzsche, anunciando o "super-homem” nascido das cinzas do velho Deus e cujas ambições pessoais de autoendeusamento alcançaram proporções paranoicas. Mesmo já vivendo na pós-modernidade, esse prato é recozido e sempre de novo apresentado.

O que é certo: O “desligar-se" do filho novo da parábola bíblica, levou-o, mais cedo mais tarde, de volta ao pai. Somente, ele de novo "ligado" houve festa!


Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas

14 visualizações

Posts recentes

Ver tudo

Comments


  • Facebook ícone social
  • Instagram
  • YouTube
bottom of page