Já li e reli várias vezes o conto judaico abaixo. Sempre fiquei e fico impressionado por que o homem de fé, testado pelo rei, não reage com um “azedar-se”, com um “queixar-se”, com um “desanimar”, com um “revoltar-se”, com um “duvidar”. A fé do homem não deu nenhum espaço para isso. É possível uma tal fé?
“Há muitos anos, na Pérsia, havia um rei chamado Abbas. Era conhecido como um homem honesto e justo. Toda noite ele vagava pelas ruas da cidade, disfarçado, para assim conhecer melhor os seus súditos. Certa vez, durante uma de suas andanças, notou uma pobre cabana. Ao olhar pela janela, viu um homem diante de uma refeição bem simples, cantando louvores a Deus. O rei bateu na porta e perguntou-lhe se aceitava um convidado. ‘Um convidado é uma dádiva de Deus’, disse o homem. ‘Por favor, sente-se e junte-se a mim’. E, assim, repartiu sua refeição com o rei. Os dois conversaram por muito tempo. O rei perguntou-lhe como ganhava a vida. ‘Sou sapateiro’, respondeu o homem, ‘caminho o dia inteiro consertando os sapatos do povo. E, à noite, compro comida com o dinheiro que ganho’. ‘E o que será do dia de amanhã?’, perguntou o rei. ‘Não me preocupo com isso’, retrucou o homem, assim como está nos Salmos, eu digo: ‘Bendito seja Deus cada dia, dia após dia’. O rei ficou muito impressionado com essa atitude e prometeu voltar no dia seguinte. Para testar o novo amigo, o rei promulgou um decreto: ninguém poderia consertar sapatos sem uma licença”.
Esperava-se do homem um azedar-se por causa do decreto do rei. Poderia ficar xingando! Mas a sua fé superou o azedume!
“O rei voltou a visitá-lo na noite seguinte, encontrando-o sentado em sua pobre cabana, comendo, bebendo e louvando a Deus. O homem convidou-o novamente a participar da frugal refeição, porque ‘um convidado é um presente de Deus’. O rei ouviu o homem lhe contar: ‘Não podendo consertar sapatos, por decreto do rei, resolvi tirar água do poço para as pessoas, para ganhar um pouco de dinheiro e comprar meu sustento’. ‘E o que você faria se o rei proibisse isso?’ ‘Direi: Bendito seja Deus, dia após dia’. O rei decidiu testar mais uma vez o homem e decretou que seus súditos estavam proibidos de tirar água dos poços sem licença”.
Esperava-se do homem um queixar-se por não ter a licença do rei. Poderia culpar a si e aos outros. Mas a sua fé superou a queixa!
“Na noite seguinte, voltando novamente à cabana, o rei foi recebido por seu novo amigo com alegria e o ouviu novamente declarar sua fé em Deus. O rei não estava convencido e decidiu testar mais e mais o homem. Este passou a cortar lenha para garantir seu sustento e, quando isto também foi proibido pelo rei, não desanimou e apresentou-se ao palácio real para fazer parte da guarda real”.
Esperava-se do homem um desanimar diante das repetidas impossibilidades lhe impostas. Praticamente ficou sem mais nenhuma opção a não ser apresentar-se para fazer parte da guarda real. Foi a fé que fez ele optar por essa única chance!
“O homem que foi sapateiro, depois carregador de água e, em seguida, lenhador, recebeu uma espada, para ser guarda. À noite, sem ter recebido o pagamento, foi até uma loja e trocou a lâmina de sua espada por um pouco de comida e colocou uma lâmina de madeira no cabo, cobrindo-a com a bainha. Logo depois, o rei chegou. Eles seguiram o mesmo ritual, comendo e conversando até tarde. O amigo lhe contou sobre a espada. ‘E se houver uma inspeção nas espadas, o que você fará?’, quis saber o rei. ‘Bendito seja Deus, dia após dia’, respondeu o homem, mais uma vez não demonstrando preocupação alguma”.
Esperava-se do homem uma revolta por todas as portas terem-se fechado. Teria todas as razões para entregar os pontos e vingar-se. Mas a fé o segurou para nenhuma ação vingativa.
“No dia seguinte, o capitão dos guardas ordenou ao homem que decapitasse um prisioneiro, por ordem do rei. ‘Nunca matei ninguém em toda minha vida. Como posso fazer isso’, retrucou o homem, abaixando a cabeça e recitando o Salmo: ‘Bendito seja Deus, dia após dia’. Logo lhe ocorreu uma brilhante ideia e se precipitou para obedecer à ordem do rei. Na frente de uma multidão que viera para assistir a execução, pegou a sua espada e gritou: ‘Deus Todo-Poderoso, o Senhor sabe que eu não sou um assassino. Se o prisioneiro for culpado, deixe minha espada ser de aço. Mas, se ele for inocente, faça com que a lâmina de aço transforme-se em madeira’. Dizendo isso, puxou a bainha e, oh!, a espada era de madeira! Todos ficaram pasmos de surpresa”.
Esperava-se do homem, no mínimo, uma dúvida em relação ao pedido a Deus. Mas a confiança nos rumos de Deus era total. A fé encontrou nele e em Deus uma saída diante da vida ameaçada.
“O rei chamou o sapateiro e o abraçou. Contou-lhe sobre o seu disfarce e os testes pelos quais o fizera passar. ‘Eu nunca tinha encontrado um homem com tamanha fé’, disse o rei. E foi assim que o sapateiro, que se tornou carregador de água, e depois lenhador, guarda real e finalmente o conselheiro do rei”.
É possível uma tal fé?
Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas.
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